As casas de Sócrates na Beira Interior Aldeias à margem da polémica | ||
A D. Maria José está assustada. Meteram-lhe medo por causa da casa onde vive. “Foi o meu irmão que tratou de tudo e já morreu”, diz a anciã, de 71 anos, enquanto sai de um anexo à habitação ampliada em 1982 com um projecto assinado por José Sócrates. Em Faia, como noutras aldeias do concelho da Guarda, onde o actual primeiro-ministro assinou dezenas de projectos, a censura das populações vai mais para as suas políticas do que para as polémicas assinaturas na década de 1980. Até agora foram reveladas 23 construções com projectos assinados por José Sócrates, em oito aldeias e na cidade da Guarda. Mas existem mais. | ||
Agarrada a duas bengalas que a ajudam a enfrentar as agruras da vida e ultrapassado o receio inicial, a D. Maria José conta alguns detalhes da história da Casa do Barrôco, uma das três de Faia cujos projectos foram assinados por José Sócrates: “Isto foi uma ampliação, a base ainda é de pedra – agora já não se podia fazer assim porque vêm aqui muitos turistas – mas não sei mais nada. O meu irmão é que sabia.” A anciã é interrompida bastas vezes por outras quatro mulheres da aldeia, que abandonaram as escadas solarengas da capela frente à casa para conhecerem os motivos da agitação causada pelos estranhos que têm aparecido nos últimos dias. “O que nós lhe pedimos [a Sócrates] é que dê casas novas a quem as não tem”, interrompe Fernanda Maria, de 59 anos, apressada ao encontro do marido para lhe entregar o almoço no trabalho. “Nunca esteve uma crise assim”, diz a mulher. Antes de seguir caminho, junto à capela cuja chave guarda, acrescenta: “Deviam era olhar para isto, está toda estragada, com o telhado a cair...” A questão política pouco interessa às gentes que de repente viram as suas aldeias e habitações nas televisões e na internet. Quem assinou ou não os projectos também lhes é indiferente. E a ironia é muitas vezes escolhida para responder às questões sobre os projectos de ‘Socras’ – como insistem em chamar ao primeiro-ministro, engenheiro que exerceu a profissão na década de 1980 no concelho da Covilhã. Próximo do largo da capela de Faia, junto a um fontanário onde os escritos avisam que não está ligado à rede pública – “Água não vigiada”, diz o aviso – Maria Hermínia, de 70 anos, desabafa: “Mais valia continuar a fazer casas do que estar a governar o País como está!” Há quem pense o contrário, devido à falta de qualidade arquitectónica da generalidade dos edifícios. Paredes-meias com outra das habitações de Faia alvo da polémica espoletada no início do mês vive Casimiro Monteiro Lopes, de 65 anos. O reformado, um antigo pedreiro que ajudou a construir a Casa do Barrôco, explica que os proprietários vivem na Guarda, a 13 quilómetros da aldeia, e só ali passam alguns fins-de-semana. Aliás, a maioria dos prédios é de antigos ou actuais emigrantes ou de segunda habitação. “Olhe, eu é que ainda vou a ministro”, diz bem-disposto, por ter trabalhado na construção de uma obra assinada por José Sócrates. Berta Costa, de 66 anos, proprietária de uma vivenda na aldeia, forrada a azulejo e com um painel evocativo de Nossa Senhora de Fátima – igual aos existentes noutras habitações da região – é menos expansiva, até porque o marido, Leonel Costa, está ausente. Enquanto pendura a roupa no estendal colocado na fachada, justifica que em 1983 eram emigrantes. “Eu nem o conheci!”, exclama, entrando de seguida em casa. A menos de cinco quilómetros, pela EN16, fica a aldeia de Covadoude, onde nasceu Joaquim Valente, o actual presidente da Câmara Municipal da Guarda, também envolvido na polémica. As casas de pedra, algumas em ruínas, as ruas estreitas em paralelos ou cimento, não são muito diferentes das de Faia. Em qualquer delas saltam à vista as obras mais recentes, que desvirtuam o casario típico, mas respondem às necessidades dos proprietários, muitos dos quais passaram parte da vida a trabalhar emigrados pa- ra poderem construir uma vivenda, às vezes “tipo maison”, na sua terra Natal. Em Cavadoude há duas casas do ‘Socras’. Uma delas, na rua do Carvalinho, está à venda pelos proprietários, que são emigrantes e estão ausentes. Na outra vive Elisabete Paixão, de 30 anos, nada afectada com a questão das assinaturas: “O casal que a mandou fazer já morreu e eu não sei nada. Nem estou preocupada.” A mulher, que comprou a casa há dez anos, só estranha a situação porque os jornalistas a andam a “chatear” e apressa-se a continuar a sua vida, enquanto outra mais velha e de palavra fácil, que assiste à conversa, intervém: “Eu sei lá o que se passou! Isto é tudo uma luta de políticos!” E fica assim feita a síntese do que pensam muitos dos moradores das aldeias do concelho da Guarda sobre os projectos assinados pelo primeiro-ministro. Tanto mais que, como dizem, os prédios não valorizam mais por causa disso, nem estão a pensar vendê-los. E viver num projectado por José Sócrates apenas serve para animar as conversas de café e as brincadeiras entre vizinhos e amigos. Mesmo assim, e apesar da maioria das pessoas acompanhar o assunto com fair-play, há quem manifeste menos vontade em falar sobre as já chamadas casas de Sócrates. Em Amoreiras do Mondego, onde há duas, Gonçalves Abel e Idalina nem ultrapassam o relvado até à grade da vivenda sobranceira à estrada principal da terra. Falam à distância, desvalorizando as perguntas, perante o olhar atento de uma vizinha, que acompanha a conversa da janela de uma maison. “Não quero falar disso. Não sei o que se passou”, diz Idalina, que esteve emigrada em França com o marido durante 40 anos. “Sei que paguei tudo o que tinha a pagar e só soube do problema quando vi na televisão e no debate no Parlamento”, destaca, pronta a acabar com as explicações quando chega Abel Gonçalves, chamado a conselho da vizinha que continua à janela. “Olhe, os políticos são todos iguais. Não é só aqui, é em todo o Mundo”, sentencia, enquanto a mulher, agora já mais à vontade, termina: “Se fizeram o que não deviam [Sócrates e alguns engenheiros da Câmara da Guarda], então que paguem todos por isso.” A verdade é que, do ponto de vista legal, nada a sublinhar: os projectos foram aprovados pelos órgãos autárquicos, apesar das críticas ou dúvidas levantadas em relação a alguns deles. A meia hora de caminho da Guarda, pela EN18, no sentido de Manteigas, fica Valhelhas. Anexa às Escadinhas da Mina, no bairro dos Barreiros, forrada a azulejo e com um painel de Nossa Senhora de Fátima, situa-se a casa de um militar da GNR, reformado, que também é proprietário de um terreno e uns anexos em frente, do outro lado da estrada. A família não vive no concelho e só de vez em quando é vista na terra. José Reis de Oliveira, de 73 anos, ex-emigrante em França por duas vezes, no total de 22 anos, aproveita a tarde solarenga de Inverno para engraxar calçado no seu quintal e não resiste à curiosidade. Dispõe-se a dar algumas informações sobre a vivenda do vizinho, com projecto assinado em 1982 pelo primeiro-ministro. “Não ligo a política, religião e desporto, embora seja católico e do Benfica, mas pouco”, começa por dizer o reformado, rematando a sua opinião sobre a polémica de forma lacónica: “Deus é Deus e também não agrada a todos!?” Em Valhelhas há quem diga, depois do que viu na televisão, que “a casa do GNR é clandestina”. Não é verdade em relação a esta, nem a qualquer outra das dezenas que têm projectos assinados por José Sócrates. Apenas vão ficar nos anais da política porque um jovem engenheiro técnico a caminho de ser primeiro-ministro lhes pôs a sua assinatura. CASA PEQUENA EM PEDRA DEU LUGAR A DOIS PISOS A ampliação da casa onde vive a D. Maria José, em Faia, terá sido projectada em 1982 por Joaquim Valente, actual presidente da Câmara da Guarda - segundo afirmam os familiares da idosa - mas os documentos foram assinados pelo primeiro-ministro. A original era em pedra. AUTORIA DOS PROJECTOS A notícia de que José Sócrates assinou dezenas de projectos de arquitectura e engenharia relativos a edifícios no concelho da Guarda, na década de 1980 – cuja autoria alguns donos das obras garantem não ser dele – foi revelada no início do mês pelo jornal ‘Público’. O primeiro-ministro assumiu de imediato “a autoria e a responsabilidade de todos os projectos”. Mas muitos foram atribuídos a engenheiros técnicos seus antigos colegas de curso e então funcionários da Câmara da Guarda, que não podiam assiná--los por impedimento legal. "NEM SEQUER LI A PLANTA" O Ti Casimiro – Casimiro Lopes – vive paredes-meias com uma das casas da polémica desde 1983 e ajudou a construir outra, no largo da capela de Faia. “Era pedreiro e andei lá com outros a fazer as obras de ampliação. Andávamos a trabalhar ao dia para aí durante um ano”. E o projecto do Sócrates, viu-o? “Nem sequer li a planta.” “As pessoas têm mais que fazer, não ligam a estes assuntos. Eu agora é que ainda vou a ministro”, ironiza, de braços abertos no meio da rua, sorridente. SOBRE UMA PALHEIRA Uma das casas mais polémicas foi projectada em 1986 em Rapoula e mereceu logo a contestação de um vizinho. Orlindo Ferreira, de 54 anos, dono de oficinas de reparação e venda de motos, ainda hoje está revoltado e promete voltar a protestar. “Fizeram aqui um masmorra, que me prejudica e estragou esta zona.” A casa foi construída sobre uma palheira (um curral de vacas) sem drenagem de esgotos, com janelas viradas para o quintal do reclamante. OS MAIS POBRES FORAM AJUDADOS José Sócrates não recebeu dinheiro pela maioria dos projectos que assinou, segundo uma fonte do gabinete do primeiro-ministro. Mas o caso de José Sócrates não é o único. Em Amoreiras do Mondego, o engenheiro Fernando Caldeira é elogiado junto a outra casa assinada por José Sócrates: “Ele fez muitos projectos de borla. Isto agora só acontece tudo porque o Sócrates é primeiro-ministro”, diz o filho de José Mário, agricultor, ausente a “tratar da sua vida”. “Os meus pais estão-se a marimbar para o caso. Nesta aldeia, Fernando Caldeira deu muitos projectos aos mais pobres”, conclui o filho dos agricultores. CÂMARA CRIA COMISSÃO O presidente da Câmara da Guarda (PS) anunciou quarta-feira (dia 13) a nomeação de uma comissão para averiguar alegadas irregularidades no licenciamento de obras particulares no concelho na década de 1980, relativas a projectos assinados por José Sócrates. “Fundamentalmente o que queremos que fique claro é se, pelo facto de ser o engenheiro José Sócrates o responsável pelos projectos, houve violação da legislação”, explicou Joaquim Valente. O processo de averiguações também vai apurar “se houve facilitação nos procedimentos que visavam a aprovação dos projectos nas Reservas Agrícola e Ecológica”. DESCOBRIU INTERNET AOS 71 ANOS A D. Maria José não consegue perceber muito bem o que está a acontecer. “Sei que apareci na televisão e na internet. No início meteram-me muito medo, mas agora está tudo bem.” Não reconhece onde está o interesse do tema: “Na altura não era primeiro-ministro e agora é...”, diz. Quando fica mais sossegada, com a ajuda e descontracção das vizinhas, explica que a Casa do Barrôco tem o nome porque sob ela passa um ribeiro, que foi desviado. Quanto à construção pouco sabe, porque esteve tudo a cargo do seu único irmão, já falecido. Seja como for, teve uma experiência que dificilmente sonharia aos 71 anos de idade: viu-se a ela e à sua casa na internet, em casa de um sobrinho, de 38 anos. NOTAS ANTIGOS COLEGAS EM COIMBRA O grupo envolvido na polémica é composto por Fernando Caldeira, António Patrício e Joaquim Valente, ex-colegas de Sócrates no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. AUTORIA INQUESTIONÁVEL O presidente da Câmara da Guarda, Joaquim Valente, afirma que a titularidade dos projectos de arquitectura e engenharia assinados por Sócrates “é inquestionável”. 279 A freguesia de Faia é aquela onde existem mais projectos (três), se exceptuarmos a sede de concelho. Tem 9,63 km² de área e 279 habitantes (Census 2001). LOCALIZAÇÕES IGNORADAS Em algumas aldeias só através de cópias das fotografias das casas, publicadas na internet os moradores conseguiram localizá-las. ’TORRES’ ENTRE CASÁRIO DE PEDRA As novas habitações, muitas das quais resultaram de ampliações, apresentam agora grande contraste com o casario típico em pedra. INFORMADOS PELO ’CONTRA’ “Eu soube disto pelo ‘Contra-Informação’, quando a casa apareceu com o boneco do primeiro-ministro a gritar “Assinei! Assinei! Assinei!”, exclama um popular em Rapoula. FOSSA DESPEJA PARA O QUINTAL “Ainda hoje a fossa despeja para o meu quintal. Tem divisões muito pequenas, não tem licença de habitabilidade e estraga o largo”, diz Orlindo Ferreira, em Rapoula. JURISTAS VÃO FAZER INQUERITO A comissão nomeada pela Câmara da Guarda é composta por José Guerra e Delfim Silva, ambos da autarquia, e pelos juristas Alberto Garcia, Daniela Capelo e Tatiana Adro. CONSIDERADAS COISAS NORMAIS Um casal residente no bairro de São Domingos desvaloriza a questão das assinaturas. “Eram coisas normais, havia trocas entre eles”, dizem, pedindo para não serem identificados. ENTREVISTA LEVOU A INVESTIGAÇÃO Foi uma entrevista de Abílio Curto, ex-presidente da Câmara da Guarda, à Rádio Altitude que originou a polémica. Ex-autarca nega agora ter duvidado da autoria dos projectos. COVILHÃ PARA A GUARDA O primeiro-ministro trabalhava na Covilhã quando assinou os projectos na Guarda na década de 1980 enquanto engenheiro técnico. FEITAS NA TERRA DO AUTARCA Em Cavadoude, terra do actual presidente da Câmara, foram identificadas duas casas com projectos assinados por José Sócrates. | ||
23-02-2008 | Correio da Manhã |
domingo, 24 de fevereiro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário